Guerra, violência e cavalaria em Portugal, 1367-1481

Autor convidat
André Luiz Bertoli
Universidade Nova de Lisboa - Instituto de Estudos Medievais

Iluminura do século XV representando a Batalha de Aljubarrota, in Jean de Wavrin, Chronique d’Angleterre, British Museum, Londres

O presente trabalho, ainda em andamento, pretende analisar a guerra e a violência tal como é representada na documentação portuguesa da Baixa Idade Média. A abordagem proposta é complementar a duas linhas de pesquisa: os estudos de História Militar Portuguesa e a perspectiva histórico-literária sobre a ação guerreira. Assim, a pesquisa se enquadra sob o prisma da análise de modelos de comportamento e constituição da cultura guerreira, mais especificamente, a representação e justificativa construída num conjunto de documentos que abordam os conflitos portugueses.

Dentro desta problemática mais ampla, dar-se-á atenção a como está construído e representado nas fontes a relação entre a violência e a cavalaria. Tendo em conta o interesse desta problemática, proponho: 1) caracterizar a relação entre a guerra, a violência e a cavalaria, procurando definir a sua representação nos textos; 2) verificar como os valores guerreiros e os religiosos são percebidos pelos letrados e transpostos para os textos; 3) analisar as consequências da violência guerreira no reino português tardo-medieval e as formas como a cavalaria as mitigaram (ou não).

Nas fontes, darei atenção a aspectos como: os abusos nas cavalgadas; a intimidação nos cercos; a glória nas batalhas campais; o tratamento e a violência contra os não-combatentes; a necessidade de reféns (principalmente de alta estirpe) e saques; as consequências para os derrotados (execução, servidão, resgate, etc.); a tensão entre os valores guerreiros e as virtudes religiosas na construção de um ideal de cavalaria; a representação da cavalaria desordenada e da cavalaria ordenada. Ainda interessa: definir os sujeitos da práxis bélica; estudar a argumentação dos autores para legitimar a guerra; e, por fim, ponderar quando a violência podia trazer glória e honra ou o contrário.

Procura-se, portanto, sistematizar e elencar uma tipologia das violências expostas nos documentos, bem como, consolidar uma perspectiva sobre a relação entre a produção letrada, as práticas guerreiras e a construção de arquétipos nobiliárquicos na Baixa Idade Média Portuguesa. Com isso, almeja-se compreender de que forma a cultura nobiliárquica e guerreira permeada por uma cultura de cunho religioso eram adaptadas pelos letrados ao discurso dominante que aqueles autores representavam.

De tal modo, este trabalho se insere, em parte, na linha aberta pelas investigações de João Gouveia Monteiro e Miguel Gomes Martins, diferindo delas no direcionamento da investigação – ao invés de focar na Organização e Prática da Guerra, dar-se-á atenção às Representações. Conforme proposto por estes autores, a guerra medieval é um fenômeno multifacetado e complexo, podendo ser analisada a partir de várias perspectivas. Todavia, ao abordar os documentos (cortes, chancelarias, leis, crónicas, manuais de guerra e cavalaria, etc.), ambos os autores se concentram nos aspectos práticos, materiais e sociais da guerra. Em menor medida, ainda dão atenção à cultura e às mentalidades.

Iluminura de finais do século XIV representando a pilhagem de uma casa em Paris, in Chroniques de France ou de St. Denis, British Library, Londres

O corpus documental para a concretização desta Tese é dividido em dois grupos: as crónicas e os "documentos da prática". Sobre as Crónicas, sabe-se que as práticas da nobreza levaram a condenação ou a idealização do exercício bélico, o que gerou representações. Nesse sentido, segundo Roger Chartier em A História Cultural – entre práticas e representações, os objetos culturais seriam produzidos entre práticas e representações, enquanto os sujeitos produtores e receptores de cultura circulariam entre estes dois polos. Da obra de Chartier se destaca um trio conceitual: prática, representação e apropriação. Complementando a abordagem das fontes narrativas, também será levado em conta à leitura dos textos de Marcella Lopes Guimarães e de Jaume Aurell, que propõem analisar as obras medievais como artefatos literários e históricos, considerando a sua complexidade e unidade narrativa. Assim, ao analisar textos medievais, devemos: ter em mente a relação entre referência e ficção, História e gênero literário, contexto e texto, conteúdo e forma; levar em conta a lógica e função do texto histórico; saber que ao longo da Idade Média houve uma sobreposição e assimilação dos gêneros literários e históricos; refletir sobre a conexão entre as transformações literárias, historiográficas e as mudanças sociais; pensar no sentido da prosificação e vernacularização das crónicas; e, por fim, lembrar que a crónica foi o gênero historiográfico que triunfou no final do Medievo.

Portanto, com as narrativas histórico/literárias será feito um duplo trabalho: extrair informações práticas e concretas sobre o tema em estudo – sem esquecer a distância temporal entre o tema da redação e o seu contexto direto – e analisar as representações discursivas sobre aquelas operadas. Dentre as crónicas escolhidas, consta uma obra anônima (a Crónica do Condestabre, que versa sobre grande parte da vida de Nuno Álvares Pereira (1360-1431), tendo sido escrita na década de 1430); duas crónicas de Fernão Lopes (a Crónica de D. Fernando, escrita no final de 1430 e início de 1440; e a Cronica del rei Dom Joham I redatada na década de 1440, relativa à ascensão e início do reinado de D. João I); os textos de Gomes Eanes de Zurara (a Crónica da Tomada de Ceuta, escrita entre 1449-50; a Crónica da Guiné, redatada em 1452-53 e complementada cerca de 1460, que narra os feitos portugueses ao sul do Magreb entre 1420-50; a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, composta entre 1458-64, relativa à ação do Capitão de Ceuta entre 1415-37; e a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses, escrita entre 1464-68 sobre os feitos do Capitão de Alcácer Ceguer entre 1458-64); e, por fim, duas obras de Rui de Pina (a Chronica do senhor Rey D. Duarte e a Chronica do Senhor Rey D. Affonso V, redatadas entre 1500-10, tendo como objeto os reinados de pai e filho entre 1433-81), que por terem sido escritas após o período de interesse, só serão consideradas por conta dos dados a ele relativo, mas não pela construção cronística para legitimar D. Manuel I. Informações básicas sobre estes textos podem ser encontradas no Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, coordenado e organizado por Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani.

Tapeçarias de Pastrana, representação da conquista de Arzila por D. Afonso V. Igreja Colegiada de Pastrana. Museu Paroquial de Pastrana

O segundo núcleo documental foi constituído a partir de levantamentos num conjunto de fundos administrativos. De forma sistemática, foram vistas as chancelarias régias e os capítulos de cortes dos reinados de D. Fernando, D. João I, D. Duarte e D. Afonso V, ou seja, de 1367 até 1481 (algumas delas publicadas pelo Centro de Estudos Históricos da FCSH-UNL; os documentos também estão disponíveis na Torre do Tombo). Também foram consultados outros fundos através de catálogos publicados, como: as Gavetas da Torre do Tombo (12 volumes) e o Núcleo Antigo. Além destes, ainda foi consultado um sumário particular da Coleção Especial, organizado pelos Professores Doutores Luís Filipe Oliveira e João Luís Fontes, a quem agradeço. A documentação destes fundos está disponível no Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT/Gavetas; ANTT/Núcleo Antigo; ANTT/Colecção Especial). Ainda neste arquivo, também consultamos o Corpo Cronológico (ANTT/Corpo Cronológico) e a Leitura Nova (ANTT/Leitura Nova). A par da Torre do Tombo, sondamos os 15 volumes da coletânea documental Monumenta Henricina, além do fundo Chancelaria Régia do Arquivo Municipal de Lisboa (AML-AH).

As fontes relacionadas com o desenrolar concreto da guerra e da violência foram sistematizadas em função dos grupos definíveis após o levantamento dos documentos, pois a sua análise terá em conta, evidentemente, a tipologia documental de origem. Os vestígios de violência encontrados nos capítulos de cortes, por exemplo, serão analisados à luz da especificidade deste discurso "político", principalmente na linha proposta por Armindo de Sousa em As Cortes Medievais Portuguesas, 1385-1490. Enquanto para as Chancelarias, principalmente no que diz respeito à relação entre o rei e a nobreza, temos como base teórica os trabalhos de José Mattoso e Fátima Regina Fernandes. Também há o tratamento dos documentos referentes à definição de leis, da justiça e da ordem no reino, para os quais temos como referência a análise efetivada por Luís Miguel Duarte em Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (1459-1481). Destaca-se o fato de que esta investigação não procura sublinhar qualquer dicotomia entre o "vivido" e o "representado" das crónicas, porém, tentar-se-á encontrar a comparatividade possível e, tendo em conta as decalagens temporais, procurar-se-á colmatar as lacunas dos vários discursos.

Por conseguinte, acredito ser importante a realização desta pesquisa que aborda a representação e a relação entre a guerra, a violência e a cavalaria, da maneira que fora construída pelos letrados do século XV. Com isso, proponho refletir como os documentos narrativos de caráter moral, histórico/literário e administrativos, lidam com o problema exposto, central à identidade e cultura dos grupos diretamente envolvidos na produção e recepção destes textos. Como constatado, muitos dos recentes estudos sobre o tema e contexto em pauta se concentram, principalmente, na organização, na prática e noutros aspectos materiais da guerra, enquanto a relação entre a violência, a ação guerreira e o mundo dos letrados é abordada somente em raros subtítulos de livros e em algumas Teses e artigos. Portanto, este estudo se justifica porque não há uma investigação profunda sobre esta relação para a realidade portuguesa tardo-medieval.

Nota del Grup Harca: Aquest post és una col·laboració d’un autor convidat, a qui públicament agraïm el seu esforç.